sexta-feira, 27 de abril de 2012

Gota d'água


Foi a gota d’água

a gota da primeira chuva do ano
depois de tantos meses de seca;
o início da cheia do leito do rio,
única via de acesso entre Mariana e Gabriel;
a gota de orvalho na folha do pasto verde
por onde rolam dois vultos no amanhecer;
estrela, gota de luz no céu aberto;
gota que foge dos olhos rosto abaixo,
fugaz, e repousa no ombro amigo;
a gota que deixa o copo metade cheio;
o peito mais largo;
o abraço mais forte;
o sorriso mais sincero
e a vida menos seca.

Que chova!

domingo, 15 de abril de 2012

Idas e Voltas


Eu nunca soube muito bem como funciona essa história de reacender um velho amor. Até porque, comigo a chama só apaga quando a vela acabou, e se a vela acabou não há mais nada que se fazer (a não ser, de repente, reaproveitar a parafina para fazer um desses enfeites feios de estante, meio natalinos, que acabam parando numa gaveta escondida que adota a função de sepulcro de memórias que não queremos esquecer, mas também não temos mais disposição de polir e cuidar).
Mas talvez nesse caso a vela não tivesse apagado, só queimava de pavio curto e chama fraca. Quando voltei, cheguei a pensar que seria impossível reacender uma chama, teria que improvisar uns galhos, incenso e álcool para arder desordenadamente enquanto elaborava meu plano de fuga. Felizmente não foi assim.
Há certa beleza melancólica nessa cidade que faz seu morador se revoltar, ter medo, ter sempre pressa e sempre planos de partir, mas ao mesmo tempo criar umas raízes que alimentam uma parte importante do espírito. Porque o Largo do Café, o encontro da Avenida São João com a São Bento, a engraxateria, os bares, o Anhangabaú são inegavelmente bonitos. Porque a Estação da Luz, principalmente ali, nas passagens acima do trem, é lugar de descanso e encosto para todo tipo de gente, assim como o Parque da Luz, e é bonito o jogo de cartas dos senhores que se reúnem ali. Porque o povo daqui é desconfiado e carrancudo, te encaram sem vergonha nenhuma, medem de baixo a alto; muitas vezes é medroso; é trabalhador e não deixa espaços para vagabundos ou errantes; povo acolhedor dos conhecidos e/ou importantes, metido em bares, festas fechadas, eventos culturais; mas, justamente por isso tudo, fica tão bonito quando alguém esquece a carranca ou a ironia e ri um riso sincero, meio infantil, quase impudico numa cidade como São Paulo, e é altamente revigorante quando presenciamos um gesto de bondade ou educação. É mais belo que um corpo se desnudando, essas pequenas exibições da alma. E lá no fundo aqueles que têm coragem de cavocar encontram um coração, com mais frequência do que se imagina.
A vida aqui funciona assim: como tem medo, não tem espaços públicos (e abertos) de lazer, não tem praça, não tem banquinho e mesa, não pode sentar na grama, não pode sentar no chão, quase não tem parque, os poucos lugares de conforto que há estão lotados – entre na fila para descansar – e os vazios se paga caro; então você enche seu dia de atividades e trabalhos e baladas para não perceber isso, e quando quiser descanso vai para casa ver TV, depois de brigar ou carrancudear com o primeiro que cruzar seu caminho.
Essas atividades e trabalhos, felizmente, podem ser muito reconfortantes – nessa vida presa daqui nossa melhor escapatória é cultivar fortemente o intelecto, investir nos estudos e no labor, mesmo. Por isso somos tão metidos a inteligentes.
Atrevo-me a dizer que é uma vida sem muitas emoções, com exceção dos desentendimentos com os operadores de telemarketing, que na maior parte das vezes não merece mesmo ouvir você puteando daquele jeito, apesar de possivelmente você ter razão nas suas reclamações. Mas assim, vida movida, de soma de pequenos agitos, e de, às vezes, pequenos prazeres no trabalho, uma felicidade mansa, sensação de realização; um amor ou outro meio insosso e possessivo, ou um drama meio doentio que abala mais pela dor do que pela paixão, ou, com sorte, um amor sereno e calmo, do cansaço que o tempo traz.
A gente aprende a dizer, sem nenhuma sutilidade, alguns bons palavrões para resistir ao dia-a-dia dessa cidade, com exceção de alguns poucos recatados – que, diga-se de passagem, após uma semana de convivência com a que vos fala, já aprende, pelo menos, o divertimento de uma boa praguejada.
Às vezes contamos com algumas surpresas previsíveis, como a chuva ou a mudança brusca de tempo, algum bom evento cultural gratuito, um festival de culinária, um investimento em intercâmbios ou mais uma nova burrada de algum político do PSDB – e que não pensem que isso é uma crítica partidária, ela só é inevitável depois de tantos anos dos caras governando São Paulo.
E que não pensem que essas críticas todas são raivosas ou não me incluem. Vejo-me assim, paulistana (e admito um forte desejo de seguir mudando, ainda que não queira/precise que os outros o façam). E sei bem que temos, mais do que necessário, motivos para viver assim, ser assim. Ô povo sofrido, viu. Porque quem pensa que esse estilo de vida que levamos não é desgastante e sofrido é porque não viveu o bastante aqui. Mas também temos nossas felicidades, somos amados e amáveis. Necessários. E, seja como for, sempre vou lembrar com carinho (um carinho até triste, às vezes) dessa cidade. Acho que essa esculturinha em parafina vai ficar na estante.

sábado, 14 de abril de 2012

Composição


Acordávamos cedo e líamos o horóscopo, eu e você, você e eu, numa incessante busca por brechas por onde entrasse o ar, aquele ar fresco e quente, que traz a sensação de que o dia terminou bem.  Terminou com alguém sorrindo ao pé da sua orelha enquanto assistem a um filme qualquer, abraçados. E às vezes até apareciam brechas nas frases sem sentido do horóscopo, e a gente esperava. E nada acontecia.
Enquanto nada acontecia, a gente acontecia devagar, você no violão, eu na flauta ou voz. Acontecíamos muito bem, numa sintonia difícil de encontrar, numa fluidez às vezes errada, mas sem travas, sem feiuras.  Enquanto líamos o horóscopo e discutíamos a política local e nossa história de vida, íamos dançando um samba mansinho, fazendo samba e amor até mais tarde. E sempre no que talvez eles chamassem de clímax desse baile tão bonito, a gente se preocupava com o sono de amanhã, e aos passos de Beirut íamos a nossos respectivos quartos, esperando o dia raiar para ler o próximo horóscopo.
E o dia raiava em samba, não perdíamos o compasso sem certa formosura, certa malícia do erro, aquele erro que é mesmo pra provocar quem estiver atento e desconcertar quem estivesse dançando. Embaixo do assoalho escrevíamos nossa história, com trocas de carinho e pequenas confissões, daquele jeito fechado, reservado. Mesclando o sol forte, a flojera do calor, o vento fresco da noite, as noites frias nas festas, a busca, em conjunto, pelas predições do horóscopo, enquanto a música eletrônica batia forte. E no fim nos divertíamos dançando entre nós, esquecendo de todo o cigarro e álcool dos outros. Seu cabelo caindo nos olhos fechados. Sorríamos a beça, voltávamos pelo meio da rua, entrávamos em casa aos passos de uma boa cumbia, e nos despedíamos nas portas dos quartos.
A certa altura a casa ficou vazia. Seus acordes menores e diminutos acompanhavam o lamento da minha flauta, dois moços se estendiam em nossas camas, escutando calmamente nosso lamento. A flojera não era mais só do calor, era também da dor do adeus. Íamos diminuindo a cada dia, e nos diminuíamos com isso.
Em um dado momento, talvez por toda a luz a mais que parecia entrar pelas janelas, e pela amplidão que de repente os quartos ganharam, pelo vazio que deixaram todos aqueles que compartilhavam nossa história, ou que inevitavelmente iam deixar, nesse vácuo iluminado nos olhamos fundo. Nós éramos a brecha dos nossos horóscopos. E quantos filmes não vimos, todos, juntos? Quantas risadas, quantos carinhos...
No dia que você partiu trocamos cartas e lembranças. A casa seguiu se esvaziando depois disso. E a cada dia sua ausência foi levando os acordes, um harmônico a cada dia, até que a música acabou.
A gente encontra música em muitos lugares, muitas músicas. A música eletrônica continua batendo forte, a cumbia continua regando os cafés-da-manhã de algumas pessoas na cozinha, o samba está sempre por aí dobrando as esquinas, tem um Beirut ou outro tocando no reprodutor de alguns, seguido de Los Hermanos, possivelmente. Sua música continua, aí. A minha continua aqui. Pergunto-me se elas se comunicam de longe. Que bonito seria nos juntarmos e, somando nossas notas, ouvir o contraponto do nosso amor sutil, completando, por fim, nossa composição.